"O Mosquito", nº 3, 5ª série, Setembro de 1984
ANTÓNIO DIAS DE DEUS CONVERSANDO
COM RAUL CORREIA – 3ª PARTE
Raul Correia – Alguns livros de versos: «Meus Versos, Maus Versos»; «Comboio de Corda». Livros de contos para «Os Amigos do Livro» - «Histórias do Avozinho», de que há 12 volumes editados. Na edição espanhola há 10 volumes. Tèm ilustrações de Carlos Alberto, um grande colorista. Deve sair, também nos «Amigos do Livro» uma «História de Jesus», em 4 volumes, também com ilustrações de Carlos Alberto. Mas, aquilo que mais tenho escrito são traduções. Mais de 600. Por exemplo, o «Tarzan» para a «Portugal Press» (que maçada!). Para a Agência Portuguesa de Revistas fiz muitas traduções de novelas muito más.
D.D. – Voltando à sua biografia, pergunto-lhe: tem filhos?
R.C. – Tenho, à data, 8 filhos (4 de cada sexo) 20 netos e 2 bisnetos.
D.D. – As novelas de «A Formiga», que eram muitas e nunca traziam o nome do autor, pertenciam-lhe?
R.C. – Sim.
D.D. – Desejava também saber se foi o tradutor das histórias aos quadradinhos estrangeiras publicadas em «O Mosquito», nomeadamente «Pelo Mundo Fora», «Serafim e Malacueco», «Gavião dos Mares», «Tónio Bola de Neve», «Capitão Meia-Noite», «Jovens Heróis no Deserto Branco», «Bill, Bell e Ball», «Voo da Águia», «D. Basilio», histórias do Cuto, «Príncipe Valente», «Garth», «Tommy, Rapaz do Circo», «Buck Ryan», etc.
R.C. – Sim. Foram todas traduzidas por mim. Praticamente todas as traduções de «O Mosquito» eram de minha autoria.
D.D. – Devo assinalar que essas traduções melhoravam muitas vezes o original, como nas histórias do Cuto, que eu li nas duas versões, e que ficou muito mais simpático na tradução portuguesa, enquanto o original espanhol lhe dava uma linguagem um bocado acanalhada.
R.C. – Sim, tive o cuidado de proceder assim.
D.D. – Por outro lado, Serafim e Malacueco também tinham mais graça na tradução portuguesa, em parte derivada da prosa rimada e dos preâmbulos divertidíssimos...
R.C. – Que às vezes eram maiores que a própria história.
D.D. – ... em parte resultante do aspecto bizarro de tentar contar uma história passada em Portugal usando cenários britânicos.
R.C. – Ah, sim! Muito me divertia eu com isso.
D.D. – Pergunto a seguir quais foram as influências literárias na sua maneira de escrever e nos seus argumentos. Por outras palavras, quais são os seus autores predilectos? Já sei que à cabeça vem Eça de Queiros.
R.C. – Sim, acima de todos aprecio Eça de Queirós. A seguir, os meus autores preferidos são os contistas, os bons contistas, como Guy Maupassant, Somerset Maugham, Stevenson. Também gosto muito de Pirandello como contista, mais do que como dramaturgo.
D.D. – Como considera o interesse dos curiosos pelo campo das histórias aos quadradinhos?
R.C. – Acho que é de louvar. A banda desenhada é um novo meio de contar uma história e assim deve ser encarada. Porque, o que de facto interessa é contar bem uma história, e se for bem contada através de imagens há que lhe dar o devido valor. Lembro-me dum filme soviético em que se contava o Romeu e Julieta por meio do bailado. De principio recusei-me a ir vè-lo, pois achava inconcebível um Romeu e Julieta sem os versos de Shakespeare. Pois quando vi o filme apreciei-o e aceitei que se pudesse contar uma história por um processo diferente do habitual. Neste caso o processo era o bailado. Nas histórias aos quadradinhos o processo é a imagem. Desde que a história seja bem contada, todos os processos são válidos.
D.D. – Alguma vez foi retratado em ilustrações?
R.C. – O Peon retratou-me na «Casa da Azenha». O Coelho nunca. O Carlos Alberto fez o meu retrato num dos «Contos do Avozinho». Diz ele que lhe saiu assim, sem querer.
R.C. – Não há contradição! É próprio da natureza humana mostrar diferentes aspectos, que são complementares entre si. Quando vejo alguma coisa ridícula divirto-me a lidar com ela. É curioso que não é a primeira pessoa que me faz referência ao tom magoado do «Avozinho». Mas volto a dizer-lhe: não há contradição entre as duas faces.
D.D. – Lembra-se quando se começou a utilizar a expressão «histórias aos quadradinhos» e como se chamava anteriormente?
R.C. – Não, não sei. É realmente interessante procurar descobrir a origem das designações. Penso que terá vindo do Brasil.
D.D. – Tenho razões para julgar que não. Em relação à designação «banda desenhada», ela é, como sabe, um galicismo. «Bande Dessinée» é uma má tradução de «comic strip», fabricada por meia dúzia de intelectuais franceses, no início dos anos 60. A expressão que anteriormente se usava em França era «histoires en images», ou «récits en images», muito mais correcta, pois indicava que se estava realmente a contar uma história, facto que a expressão «bande dessinée» não deixa transparecer.
R.C. – Lembro-me bem de ter lido revistas francesas que tinham um titulo que está de acordo com o que diz. Chamavam-se «Les Belles Images».
D.D. – No número 180 de «O Mosquito», de 22 de Junho de 1939, aparece uma tira com «a história de um avô maior e vacinado que comprou um jornal infantil brasileiro». Ao tal avô põem-se-Ihe as barbas em pé. Queria dizer com isto que lhe desagradavam as revistas infantis brasileiras?
R.C. – É exacto! As histórias eram disparatadas e o «português» era horrível.
D.D. – Devo portanto concluir que é contra os «comics» de horror e terror...
R.C. – Sim, sempre fui contra. E também os responsabilizo por certo tipo de criminalidade.
D.D. – Nesse aspecto, creio que concorda com Adolfo Simões Müller. Todavia, não deve ter estado sempre de acordo, especialmente noutras questões. Lembro-me duma polémica levantada entre «O Mosquito» e o «Diabrete», originada pelo facto deste ter medido a sua superfície em centímetros quadrados e ter concluído que era a revista infantil de maior superfície e mais baixo preço. Ao que «O Mosquito» retorquiu, felicitando-o pelas largas margens em branco com que o «Diabrete» tão gostosamente se adornava. Ora uma das características de «O Mosquito» era evitar espaços mortos com margens muito curtas, o que, aliás, me prejudicou pessoalmente, pois quando fiz encadernar a colecção ma guilhotinaram com pouco cuidado...
R.C. – Ah! É verdade! Nós, em «O Mosquito», sempre procurámos, o mais possível, aproveitar o espaço disponível. Evitámos sempre aquilo que, comummente se chama de «palha». Fazíamos o possível por não incluir «palha».
D.D. – Voltando ao teor dos seus guiões: numa série de artigos que publiquei sobre o Coelho (na ilustração da obra de Eça de Queirós), lamento que o artista, ao emigrar, se tivesse afastado da imaginação exultante de Raul Correia...
R.C. – Engana-se. Eu não tenho imaginação. Tenho umas ideias, mas depois custa-me desenvolvê-las.
D.D. – Estou completamente em desacordo. A dificuldade não está em fazer ficção científica, mas em desenvolver um tema a partir duma base restrita, como, por exemplo, uma simples história humana. Aqui é que são necessários dotes de imaginação.
R.C. – Retratar o homem não é simples. Porque o homem é, todo ele, duma grande riqueza. Quando contemplamos a «Pietá» de Miguel Ângelo sentimos que estamos perante algo que nos comove e impressiona. Não posso dizer o mesmo quando vejo a «Guernica» do Picasso. Por mais que olhe, continuo a ver nesse quadro um touro, (que, por sinal, está mal pintado), com um candeeiro por cima.
D.D. – Note que se diz que Picasso lamentava nunca ter desenhado «comics»...
R.C. – Talvez ele não os soubesse desenhar. Quando vejo arte moderna lembro-me sempre daquela história de «o rei vai nu», em que ninguém se atreve a afirmar aquilo que vè.
D.D. – É então do parecer que as pessoas perderam a opinião própria e, não a tendo, adoptam aquela que lhes é impingida pelos «mass media»?
R.C. – Sim! Veja, por exemplo, a televisão. Acabou por completo com o ambiente dos serões familiares. As pessoas até parece que já perderam a arte de conversar. Quanto à arte de pensar, parece que se perdeu depois dos gregos...
D.D. – Concordo que a televisão tem tido efeitos perniciosos. Mas também tem programas de grande nível...
R.C. – Decerto! Veja aquele magnifico «Ricardo II», cuja primeira parte, infelizmente, não consegui ver, porque, na segunda-feira passada, tinha a entrevista marcada com os dois rapazes do Clube Português de Banda Desenhada.
D.D. – Foi um belíssimo espectáculo. O que vem provar que não são necessárias adaptações para produzir uma boa obra. Com uma boa encenação, uma versão integral não chega a ser pesada.
R.C. – Shakespeare nunca é pesado quando se ouvem os seus versos!
D.D. – Também depende do actor que os recita...
R.C. – Também depende da qualidade dos actores, é verdade. Que magnífico actor aquele Derek Jacobi, a representar uma figura frívola, na pessoa de Ricardo II. Compare com as tristes actuações dos actores portugueses, quando interpretam Eça de Queirós. Lembra-se do filme «O Cerro dos Enforcados»?
D.D. – Lembro-me. Era péssimo.
R.C. – E aquela telenovela sobre «Os Maias»? Nem sequer conseguiram retratar convenientemente o «Dâmaso», o que não era difícil...
D.D. – Para terminar, queria pôr-lhe esta questão: foi feliz com o seu trabalho?
R.C. – Muito, muito feliz. O segredo da felicidade está em encontrá-la no próprio trabalho que se faz. Quando se trabalha com prazer, é que se é realmente feliz. Faz-me lembrar aquele episódio do «Tom Sawyer», em que ele tem de pintar um muro e arranja um processo em que os outros garotos é que o pintam, pagando ainda por cima, para terem o prazer de pintar. A felicidade consiste na conversão do trabalho em prazer. Em relação ao meu trabalho, confesso que o fiz com prazer. O que não impede que me invadam, muitas vezes, pensamentos sobre a futilidade da vida, a fragilidade da condição humana, o significado do que nós somos e dos objectivos que temos para cumprir.
Raul Correia, foto de Geraldes Lino
Lisboa, 6 de Junho de 1980
Entrevista publicada em "O Mosquito", 5ª série, nºs. 1, 2 e 3, de Abril, Junho e Setembro de 1984
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