quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Bdpress #218: SOBRE A EXPOSIÇÃO TINTA NOS NERVOS - PELO MAR DA BD PORTUGUESA ADENTRO – NO ÍPSILON (suplemento do Público)

Público, suplemento Ípsilon, 14 Janeiro 2011

PELO MAR DA BD PORTUGUESA ADENTRO

Esquecida e invisível a não ser aos olhos de um público fiel e minoritário, a banda-desenhada portuguesa aventurou-se. Cresceu, expandiu o seu território.
E vem agora reclamar o seu (novo) público, sem olhar a fronteiras artísticas ou sociológicas.
Com "Tinta nos Nervos", obras de 41 autores no Museu Colecção Berardo.

Por José Marmeleira

Lembram-se da banda desenhada? Não, não recuaremos aos tempos de uma arte popular dirigida sem vergonha às massas, quase omnipresente no quotidiano, em qualquer papelaria dos subúrbios. Ficamo•nos pelos anos 90. Lembram-se da banda-desenhada? Dos Salões de Lisboa? Da actividade entusiasmante e entusiasmada de João Paulo Cotrim à frente da Bedeteca? Do dia em que Art Spielgelman foi uma estrela na Amadora? Das edições nacionais de autores como Filipe Abranches ou Nuno Saraiva? Da histeria à volta de CaIvin and Hobbes? Do dia em que - via celulóide – Daniel Clowes e Robert Crurnb foram reconhecidos como figuras incontornáveis da cultura pop?

Alguns lembram-se, outros não.

Entretanto o que aconteceu à banda desenhada?

Precisamos: o que aconteceu à banda-desenhada portuguesa? Continuou a viver, a fazer-se, a trilhar o seu caminho, a interrogar-se, a experimentar. Ora, é urna parte relevante desse desassossego que se revela desde segunda-feira em "Tinta os Nervos", no Museu Colecção Berardo, exposição com a presença de 41 autores de vários contextos e "geografias": associados ao universo dos fanzines e das publicações alternativas (André Lemos ou Marcos Farrajota) ou identificados com outras artes visuais (Eduardo Batarda, Isabel Barahona ou Mauro Cerqueira), mais afectos às formas tradicionais da banda desenhada (Nuno Saraiva, António Jorge Gonçalves ou José Carlos Fernandes) ou interessados em forçar os seus limites (Nuno Sousa, Carlos Pinheiro ou Cátia Serrão).

Comissariada pelo crítico Pedro Moura, é uma exposição que abre uma panorâmica sobre o mar imenso, diverso e hoje cada vez mais desconhecido da banda desenhada portuguesa.

Experimentar, experimentar

Perante o fôlego exigido a "Tinta nos Nervos", e considerados dois dos seus objectivos centrais - o encontro com novos públicos diversificados e a expansão da percepção social da banda desenhada -, somos tentados a dizer que nunca se fez urna exposição como esta. "Houve outras importantes, claro, mas é primeira vez que se reúnem 41 artistas, a maior parte deles activos, e numa instituição como o Museu Berardo, que tem um diálogo com um público interessado em artes modernas e contemporâneas", sublinha o comissário. "É uma exposição que se foca em características como a experimentação, a qualidade e a expressividade pessoal, e não em características 'normais' desta linguagem visual, como a popularidade ou o sucesso comercial".

A presença de Carlos Botelho e Rafael Bordalo Pinheiro pode sugerir um percurso cronológico, mas um olhar mais atento desvenda outra orientação. "[Tinta nos Nervos"] é informada pela contemporaneidade. E esses dois autores foram escolhidos a partir dessa perspectiva. Ou seja, olhei para o passado em busca dos autores que mais experimentaram. Os trabalhos do Bordalo Pinheiro têm esse cariz e a 'Ecos da Semana', do Carlos Botelho, informou trabalhos de nomes do nosso tempo como o Pedro Burgos e o Richard Câmara, também aqui presentes".

Contemporaneidade e experimentação: eis os dois critérios de selecção. E com efeito, não faltam, na galeria do Museu, autores a expandir a ideia de banda de desenhada, a experimentar linguagens e temas contemporâneos, formas de experimentar graficamente. Vejam o traço minimalista de Bruno Borges, as sequências de figuras e formas coloridas de Diniz Conefrey, as pranchas habitadas por personagens absurdas de Miguel Carneiro, as explosões visuais no desenho de André Lemos. O ambiente psicadélico/arte pop de Isabel Lobinho (que adaptou obras de Mário Henrique Leiria). Ou a aproximação à ilustração com Maria João Worm, o registo realista de Marco Mendes, as pranchas reduzidas a balões e sem personagens de Cátia Serrão (a fazerem lembrar um trabalho da artista brasileira Rivane Neuenschwander).

E por falar em artistas, "Tinta nos Nervos" inclui um leque razoável: Alice Geirinhas e Isabel Carvalho (que se destacaram no anos 90 antes de abandonarem a banda de enhada), Mauro Cerqueira, Pedro Zamith, Isabel Barahona e o mais proeminente, Eduardo Batarda, representado com "O Peregrino Blindado. "É a primeira vez que os originais são expostos. Não estou a diminuir esta obra do Eduardo Batarda, autor de banda-desenhada que aceitou participar nesta exposição, mas a querer recuperar o livro para uma tradição mais expandida da própria banda-desenhada", avisa o comissário.

Para além das pranchas, há livros e objectos, filmes de animação, esculturas em têxteis ou plásticos, crachás
em artesanato, fanzines-objecto, murais.

Em que ficamos então? Uma exposição para ler ou ver?" Não creio que aqui haja uma resposta a essa questão. Tem algumas coisas que podem ser lidas, histórias completas e fragmentos de histórias. Ou imagens isoladas que encontram o seu objecto final em livros que podem ser olhados, folheados, mas também lidos. Por exemplo, nas obras do Tiago Manuel ou da Isabel Barahona". Banda desenhada sem personagens, ou uma prancha como uma só imagem. Banda desenhada sem quadrados. Abstracção, ausência de sequência. Elipses vertiginosas. Será tudo banda-desenhada? "Isso é algo que tento corrigir aqui. O mundo da banda-desenhada é conservador. Enquanto em quase todas as disciplinas artísticas os artistas e os públicos têm uma visão centrífuga dessas artes, com os seus desvios, fugas e espirais, na banda-desenhada acontece o contrário. Quando surge algo que não se parece com banda-desenhada 'normalizada', então é porque não é banda desenhada".

Uma arte em expansão.

A banda-desenhada dentro de um museu de arte contemporânea. Ou: a banda-desenhada a ousar colocar o pé firme sobre o território da arte contemporânea. Não é um facto inédito. Nos últimos anos, sobretudo nos Estados Unidos e na França, ela tem ousado. Robert Crumb foi capa da "Artforum", Robert Storr, director da Bienal de Veneza de 2007, volta e meia, escreve sobre o tema. Alguns museus vão abrindo (sem escancarar) as portas e há quem baralhe tudo (David Shrigley ou o colectivo canadiano Royal Art Lodge).

E "Tinta nos Nervos"? Também contribui para a legitimação da arte que nasceu com o suíço Rudolf Tõplfer no século XIX? Talvez, ainda que por outros atalhos: "O público em geral, quando pensa em banda-desenhada, pensa sempre num determinado tipo de produção. Infanto-juvenil, escapista, comercial, que associa à infância, porque deixou de a ler quando se tomou adulto. É normal as pessoas dizerem 'eu não leio banda-desenhada' e ninguém vê isso como um disparate. já é menos aceitável dizer 'eu não vejo cinema'.

O objectivo, com esta exposição, é combater essa inércia, criar um público novo. Parem de dizer que não gostam de banda-desenhada, e digam antes 'vou de cobrir a banda-desenhada de que gosto'", defende o comissário.

Tarefa nem sempre fácil. a lista de participantes sobram autores que publicam principalmente em fanzines, em revistas de edição limitada ou livros de artista. E que apresentam e comercializam os seus trabalhos em feiras e festivais invisíveis ao radar da imprensa generalista (é o caso da Feira Laica). André Lemos, Miguel Carneiro, Marco Mendes, Jucifer, Marcos Farrajota, Nuno Sousa, Cátia Serrão e Carlos Pinheiro são alguns. Como encontrar a sua produção?" Não existindo um mercado, o público potencial da banda-desenhada portuguesa tem de ser mais activo do que o do cinema. Existem muito autores que produzem no circuito independente de fanzines; para as pessoas chegarem ao seu encontro, têm de procurar conhecer, criar pontes, ligações. Têm de se mexer".

Por vezes parece que a banda desenhada portuguesa fugiu ou foi obrigada a exilar-se, e, embora traga agora boas nova, ainda não recuperou da ressaca pós anos 90. Ou nunca houve ressaca? " esse período havia mais dinheiro e um outro interesse. E é bom lembrar o protagonismo do João Paulo Cotrim na Bedeteca. Mas [a banda-desenhada portuguesa] não deixou de crescer; cresceu e cresce, o público é que não a acompanhou, não cresceu, enquanto o preconceito impera. não há falta de qualidade e de produção, o que falta são meios adequados de divulgação. E a culpa não pode ser atribuída aos autores, que têm limitações económicas. Os editores não estão interessados em publicar, por ignorância ou medo. os principais países europeus não há nenhuma grande editora de qualidade que não edite banda-desdenhada".

Livreiros e editores leram bem? Então, toca a pôr tinta nos nervos.

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