A PIDE, de João Abel Manta
Inicio a publicação dos posts no Kuentro dedicados aos 40 anos do 25 de Abril, sob o tema “pré-25 de Abril – 40 anos”, que é o que mais me interessa recordar, atrevendo-me a republicar aqui um texto de João Paulo Cotrim, “A Banda Desenhada nos anos 70”, publicado no volume nº 28 (1972- Conversa Acabada), da colecção “Os anos de Salazar” editada entre 2004 e 2008 pela Planeta DeAgostinni para o Grupo Cofina. Conversa Acabada fica também a ser o subtítulo destes posts, glosando as célebres Conversas em Família, de Marcelo Caetano na RTP.
No final, José Mário Branco canta Natália Correia – bem a propósito.
RELÂMPAGOS: A BD DOS ANOS 70
A BD TORNOU-SE, SEGUINDO O AR DOS TEMPOS, MAIS ADULTA, MAIS EXPERIMENTAL
João Paulo Cotrim
A revista
Dirigida com mestria por Jaime Mas e Dinis Machado, cruzando o melhor da homónima francesa e da Pilote («le Journal qui s’amuse a reflechir»), levará da década passada até à próxima o nome de Tintim, um dos ícones visuais do século XX. Semana após semana, cada dupla página findava com o suspense do (continua) oferecendo ininterruptamente ao longo de 14 anos alguns autores portugueses, na fase final, um ou outro clássico norte-americano, mas acima de todos os consagrados e populares (uns esquecidos ou a esquecer, outros nem por isso): Tintim e Milou, Astérix, Alix, Lucky Luke, Blake e Mortimer, Blueberry, Clorofila e Minimum, Corentin, Bernard Prince, Coronel Clinton, Michel Vaillant, Bruno Brazil, Modesto e Pompom e tantos, tantos outros. A aventura, histórica e vagabunda ou localizada no faroeste norte-americano, tinha doravante sotaque francófono. Mas também o humor, por exemplo aquele seminal de René Goscinny, mentor da Pilote, pai de uma galeria de personagens,e verdadeiro revolucionário que, curiosamente, somou às suas características a atenção aos delírios da mui americana Mad. Assim.a revista Tintim ofereceu, além do puro entretenimento aventuroso, leituras da actualidade mais ou menos (des)focadas pelas lentes da ficção científica pós-nuclear, cómicas reflexões ecologistas ou fábulas animais de cariz anti-autoritárío. De igual modo, os autores e os estilos se mantiveram diversos. Tanto que o preto-e-branco (espontâneo e expressivo) de Corto Maltese, de Hugo Pratt, quando chegou à revista na sua fase final, foi bastante mal recebido... Por esta altura, o leque de colaborações portuguesas, tinha-se alargado de José Ruy (1930) a Augusto Trigo (1938) e José Garcês (1928), bem como a novatos como Pedro Morais (1962) ou Relvas (1954), que desenhará aí o melhor dessa época, em ficção científica, nas adaptações literárias ou nos seus thrillers urbanos.
Mundo de Aventuras, em formato reduzido desde 1973, continuará a trazer estilos e autores de distintas paragens, mas sem voltar a conseguir, apesar das mexidas, renovações e séries, retomar sucessos antigos. Roussado Pinto (1926-1985) em frenética actividade de editor, fez da Portugal Press o último reduto do saudosismo, no sem número de publicações paralelas, mas sobretudo no Jornal do Cuto (1971), através do requentado sucesso das coboiadas de Emílio Freixas e Jesus Blasco, cujo herói baptiza a publicação, e do regresso de velhas glórias, sejam Fantasma, de Sy Barry, Tarzan, de Russ Manning, ou os clássicos Flash Gordon, de Alex Raymond, e o Príncipe Valente, de Hal Foster. A ele se deve, ainda, a edição (algo descuidada, mas ainda assim assinalável) do Spirit, de Will Eisner, e da esmagadora vertigem de soft porno que, essa sim, e com títulos como Zakarella ou Karzan, auxiliará a sexualidade de uma geração.
Os fanzines são publicações aut-editadas com formato, periodicidade, distribuição e conteúdos variados e voláteis que se tornarão também espaços de liberdade criativa publicando inéditos.
Lobo Mau (1979) acolherá por instantes (13 números) em papel de jornal a esperança de aceder a obras radicais, mais adultas, contemporâneas: os desvarios de Crumb, os policiais de Muñoz e Sampaio, a ficção científica politizada da Oesterheld e Breccia, o erotismo de Crépax.
A experiência em português tomba no pós 25-Abril e divide-se entre a infantil do Fungagá da Bicharada (1976), versão em revista de programa de televisão, e aquela adulta e marcante da Visão (1975). Se a primeira pode ser considerada, ao mesmo tempo, o estertor de um modelo e tentativa de novos formatos de revista infantil em relação com a tv, como será depois e com carácter bastante mais didáctico a Rua Sésamo, a segunda deixará uma marca indelével por via da explosão da novidade dos estilos gráficos, dos temas (a guerra colonial, preocupações sociais e debates ideológicos, a libertação sexual). Seria a versão nacional, e portanto menos duradoira.da pedrada no charco que constitui a francesa L'Echo des Savannes, mistura explosiva de humor provocatório, erotismo, música e violência. Seguiram-se-lhe as importantíssimas, cada uma no seu estilo, Fluide Glacial (1975, mais puramente humorística) e A Suivre (1978, mais experimental e literária). O estilo gongórico deVitor Mesquita (1939), em Eternus 9, ressoará durante anos como figura e trabalho principal, mas resistiram melhor as pesquisas de Isabel Lobinho (1947),o pessimismo de Massano (1948), o estilo de «Zíngaro» (1948) e Carlos Barradas (1948) ou as personagens de Zepe (1956).
O álbum
A forma moderna e em expansão de aceder às ficções de bandas desenhadas, seja recolhendo o folhetim antes publicado em revista, seja directamente editado em livro de grande formato – poderia bem ser Mário e Isabel, precisamente de Isabel Lobinho e Mário-Henrique Leiria, que estabelece belas e complexas relações entre texto e imagem, entre corpo e palavra, homem e mulher, mas há-de ser Wanya - Escala em Orongo, a ficção científica de Nelson Dias (1940) e Augusto Mota (1936-1993). Evocando logo na dedicatória William Blake, autor cuja literatura visual e poética é inseparável, esta saga de contornos míticos, com toada utópica e elegância formal, possui perfume muito da época. Foi pedrada no charco, sem descendência (os próprios autores fizeram apenas mais uma história num fanzine), cuja importância suscita ainda hoje debate. Terá sido apenas pretexto para fazer deambular mais uma heroína seminua, inspirada na vaga (supostamente) libertária que soprava de França? Ou mais uma tentativa para encontrar caminhos maduros para uma linguagem sempre em crise de identidade? Falamos de portugueses, raros, que os estrangeiros chegarão depois em catadupas (a Presença trará, em 1973, Zil Zelub entre outros; a Bertrand insistirá no Blake e Mortimer, Astérix, etc, antes das Edições 70 e a Meribérica inundarem o mercado com Alex Raymond, Hugo Pratt, Schuitten e Peeters, Moebius/Giraud, Franquin, Jijé, entre tantos outros).
Outro não poderá ser senão Samuel Azavey Torres de Carvalho (1924-1993), cuja assinatura na imprensa (A Mosca, do Diário de Lisboa, A Capital, Flama, Notícias da Amadora, Diário de Noticias, Expresso entre outros) será apenas Sam, simples e intimo como as suas figuras. Foi, além de escultor do absurdo, com torneiras que dão nós, o criador de algumas das personagens indispensáveis à crónica daqueles dias: o cínico Guarda Ricardo ou a melancólica Heloísa. Dono de um traço muito sintético e expressivo, aliás com tradições entre nós desde o modernismo, duplicado depois em repetitivas cenas dialogantes,foi fenómeno duradoiro de popularidade que deixou discípulos. A política terá sido o seu tema de eleição, mas não único: os comportamentos, os modos de falar, os tiques ficaram nas suas tiras cómicas, nas suas séries como insecto pré-histórico no âmbar. Se visto ao microscópio, está lá uma sociedade inteira. Em 1972, no Noticias da Amadora, um Guarda Ricardo passeia-se enquanto pensa em voz alta: «A ordem é uma coisa muito útil. Insinua-se em nós, subtilmente... E deixa-nos uma estranha sensação de felicidade.» Está agora, hirto, frente a uma secretária com papéis e alguém sentado: «Chefe, dê-me outra ordem, se faz favor!»
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José Mário Branco - QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS, poema de Natália Correia
Queixa das almas jovens censuradas, de Natália Correia – in Poesia Completa
Publicações Dom Quixote - 1999
José Mário Branco in Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades – 1971
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
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